Meu primeiro contato com a escritora japonesa Sayaka Murata foi em 2021 quando li Querida konbini (publicado pela Editora Estação Liberdade com tradução de Rita Kohl). Eu adorei a estranheza da leitura e da protagonista Keiko, que se sentia deslocada de todas as expectativas que a família e a sociedade criavam sobre ela, e criticava uma suposta normalidade em que as pessoas à sua volta viviam.
Lendo Earthlings (edição em inglês traduzida por Ginny Tapley Takemori) tive a sensação de que a autora estava expandindo a história que eu já tinha lido em Querida konbini em um formato muito mais fantasioso e radical (e bizarro). Digo isso porque as ideias principais do primeiro livro se repetem aqui: o questionamento de estruturas da sociedade como o trabalho, a maternidade, o casamento, as relações familiares e a sexualidade.
Natsuki, a protagonista de Terráqueos (publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade com tradução de Rita Kohl), acredita que veio de um planeta chamado Popinpobopia e que tem poderes mágicos que usa para derrotar seus inimigos. Nos primeiros capítulos do livro a imaginação de Natsuki parece apenas a forma inocente e criativa de uma criança lidar com a distância que sente da família e dos abusos que sofre de um professor. Desde criança ela vê a sociedade apenas como uma fábrica para o trabalho e para gerar bebês, e que os humanos são apenas ferramentas desse sistema. Um dos aspectos mais interessantes da história que notei já no começo da narrativa é como, apesar de se ver fora desse sistema (já que é de outro planeta), Natsuki pensa que precisa se conformar e se tornar uma componente da “fábrica” para conseguir sobreviver. É um ponto que me lembrou muito de Querida konbini, apesar da abordagem ser bastante diferente aqui.
Natsuki e seu primo Yuu, que também acredita ser um alienígena do planeta Popinpobopia, passam boa parte da infância esperando que uma nave venha buscá-los para que então eles possam viver plenamente suas vidas longe dos terráqueos e da fábrica.
Por quanto tempo teremos apenas que sobreviver? Quando seremos capazes de viver em vez de apenas nos concentrarmos em sobreviver?
Após um salto de vinte anos, encontramos Natsuki adulta em um casamento de conveniência com Tomoya que, como ela, não tem o menor interesse em manter uma relação tradicionalmente conjugal, mas precisava escapar da pressão dos pais de casar e formar uma família. Eles levam uma relação amigável mas completamente independente e sem contato físico em segredo.
Quando resolvem passar algum tempo longe da cidade na casa de férias da família de Natsuki, e encontram Yuu hospedado na casa, o livro começa a tomar proporções mais bizarras.
Natsuki explica para seu primo as condições de seu casamento e que, como a nave de Popinpobopia não apareceu para buscá-la, ela está fingindo viver como uma terráquea. Até que os três personagens decidem abandonar o estilo de vida terráqueo e viver na casa da família desafiando as formas “normais” e humanas de viver e colocando em prática ideias vistas como tabu numa tentativa de provar que não se submetem ao estilo de vida da Terra.
O que realmente me assusta é acreditar que as palavras que a sociedade me faz falar são minhas
Durante as últimas cem páginas do livro a autora rompe completamente com qualquer ideia de normalidade na relação dos três personagens e na forma como eles se relacionam com outras pessoas. Como não se sentem mais como terráqueos, abdicam das leis humanas para viver e se proteger como bem entendem. Incesto, canibalismo e violência bastante gráfica encerram essa história, mas a escrita de Sayaka Murata não coloca o leitor contra esses personagens e suas atitudes, mas em uma posição de questionamento da sua própria normalidade.
Eu adorei a forma como o livro gradualmente vai ficando mais insólito à medida em que os personagens se aproximam do que entendem que seja sua origem, a do planeta Popinpobopia. Este é definitivamente um dos livros mais estranhos e interessantes que já li na vida. Acho a escrita de Sayaka Murata simples e ao mesmo tempo genial.
Na semana em que li Earthlings assisti à dois filmes com temas muito parecidos com os tratados no livro. O primeiro foi Ninguém Vai te Salvar, sobre uma jovem mulher que vive reclusa numa casa afastada da cidade até que uma invasão alienígena acontece e revela o passado da protagonista. Esse tem uma relação mais óbvia com o livro e eu lembrei bastante dele durante a leitura.
O outro filme que vi (e que gostei bem mais do que o primeiro) foi Tic-Tac - A Maternidade do Mal. O filme conta a história de uma mulher de quase 40 anos que tem uma carreira de sucesso e um casamento aparentemente saudável e não tem vontade de ter filhos. Depois de sofrer muita pressão do pai, de amigas e até de sua ginecologista, resolve se submeter a um tratamento que propõe “consertar” a mente da mulher que não quer filhos e despertar o desejo da maternidade. Esse filme me lembrou muito a relação da Natsuki com a “fábrica” e de como durante boa parte do livro ela fica indecisa sobre se conformar com a realidade terráquea ou viver verdadeiramene como um ser de Popinpobopia.
Ambos os filmes estão disponíveis no Star+.
Espero que este texto desperte a vontade de ler Sayaka Murata.
Beijos e até a próxima :)